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Aquele Tobias

Aquele Tobias… tinha impulsos procelariídeos. Refiro-me, leitores, a Tobias Barreto e lembro o espécime amante das tempestades – o gênio do escarcéu, a plúmbea procelária, do poema goulardiano.

Seu viver foi de intenso enfrentamento de tempestades. A capital de Pernambuco seria o cenário de suas lutas. As margens do Capibaribe, ruas e praças recifenses e toda gente de lá ouviram a voz forte de Tobias. Longe do nordeste Sílvio Romero fez-se pregoeiro de sua fala.

Quando Gilberto Amado chegou ali, já a Monarquia se fora, o século XIX passara e Tobias não mais estava entre os vivos. A ambiência baiana em que o futuro memorialista fizera seu primeiro curso superior era diversa. Por isso, então, Tobias lhe era distante. Ele o afirmaria em conferência proferida no Centro Oswaldo Spengler, no Rio (Tobias Barreto, 1934, Ariel Editora Ltda, R. de Janeiro). Mas aí mesmo prelecionou:

“Quanto lhe devemos todos  da atual  geração sem o saber! [ …] .

Percorrido o espaço aberto por ele em frente de nós, tomamos outras direções. Mas é verdade que a cada passo distinguimos os traços da sua passagem. Ele está no centro da cultura do Brasil. Daí será impossível arredá-lo.” 

Tobias Barreto recebeu, em 1869, o grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Recife, da qual se faria lente substituto em 1882 por celebrado concurso.

Prendeu uma geração inteira à magia de sua palavra.   […] Do alto de sua cátedra, falou e foi escutado. Sua voz tinha som próprio, inconfundível –  escreveu Hermes Lima (Tobias Barreto – A Época e o Homem, INL/MEC, 1963).

Clovis Bevillaqua, em História da Faculdade de Direito do Recife, assim considerou a sua figura:

Tobias Barreto como orador possuía caráter próprio. A palavra fácil, enérgica e vibrante, vinha em borbotões, com uma gesticulação descompassada, mas expressiva. A fisionomia, de mobilidade extrema, os olhos girando nas órbitas de modo estranho, e as contorções em que se contraiam os músculos faciais davam ao discurso extraordinária força de comunicação. […] 

Discursos notáveis produziu Tobias Barreto em várias oportunidades. Entre eles, porém, sobressaem os dois que proferiu na Câmara dos deputados provinciais de Pernambuco, em defesa da educação da mulher, e o que recitou, numa colação de grau, sobre a idéia de direito. Os primeiros são, sobretudo, notáveis, porque a questão foi colocada no terreno da biologia; o contendor de Tobias era um médico de grande capacidade técnica, o Dr. Malaquias Gonçalves, e, no entanto, nada lhe ficou a dever o grande jurista. (Livraria Francisco Alves, Rio, 1927).

Clovis em sua História anota os discípulos imediatos de Tobias e, tratando da propagação do movimento intelectual liderado por ele, diz de outros adeptos seus, aí incluso Souza Bandeira.

Em 1904 falecera Martins Junior, já eleito para a ABL, mas não empossado. A Instituição escolheu, nesse caso, para ocupar a Cadeira 13 o aludido Souza Bandeira. Acolá o recepcionou Graça Aranha. Ao assumir a curul academial Sousa Bandeira, recordando Tobias, disse:

“Quando se nos apresentou, reunindo todas as audácias, congregando todas as revoltas, seguimos eletrizados os seus passos, cheios de viril confiança nas conquistas do livre pensamento.”

Em 1887, publicado pela Tip. Miranda, de Pernambuco, apareceu Discursos do Dr. Tobias Barreto de Menezes – lente substituto da Faculdade de Direito do Recife. Trata-se da edição príncipe da coletânea de orações suas. Tal corpus expõe um paratexto assinado por A de A [Altino de Araujo, bacharel da turma de 1875 ]. Nele está escrito:

“O orador que proferiu estes discursos […] reúne à força prodigiosa do talento, à riqueza da cultura, às explosões da palavra eloqüente, a brilhante altivez do seu caráter.”

Das falas tobianas ali reunidas duas há que nesta oportunidade destaco: Educação da Mulher e Ainda a Educação da Mulher, ambas pronunciadas na sessão de 22 de março de 1879 da Assembleia Provincial de Pernambuco.

A primeira oração dizia com proposta de subvenção a uma jovem para estudar medicina. O deputado Dr. Malaquias Gonçalves combateu o projeto. Tobias apreciou a posição do seu colega :

“Se pois alguma cousa me pode causar admiração, é ver um espírito culto qual é o nobre deputado, combatente do projeto, um digno representante da medicina entre nós, por capricho ou mau humor […] abraçar-se  com o cadáver de uma teoria inanida, que já não pertence aos nossos tempos, […] Sim, é isto que me admira, e esta admiração sobe de ponto, quando considero que foi em nome da ciência que o ilustre  deputado pretendeu falar; que foi em nome da ciência e pela força do advérbio – psicologicamente, que pretende demonstrar a inferioridade da mulher, sua dependência perpétua em relação ao homem, sua inaptitude para os estudos sérios; tudo isto escrito, como ele pensa, no próprio cérebro feminino […]

[…] a questão de saber se a mulher pode estudar e exercer a medicina, já não é uma tal, já não tem caráter problemático para o alto mundo científico. […] Foi em dezembro de 1867, que na Europa se deu o primeiro impulso para um dos maiores movimentos dos tempos modernos, sendo conferido, em ato solene, o grau de doutora em medicina por uma universidade célebre, a universidade de Zürich.  Essa mulher é uma russa, e seu nome: – Nadeschda  Suslowa.“  

E lembrou:

“A tradição de Helena Calderini, filha de  Giovanni Andrea Calderini, professor de direito canônico na universidade de Pádua, a qual costumava substituir a seu pai, quase sempre ocupado em missões diplomáticas; e quando isto fazia, subindo à cadeira, era escondida por detrás de uma cortina, para não distrair com a sua beleza a atenção dos seus ouvintes.”

A segunda peça versava sobre proposta  de igual natureza referente a outra mulher desejosa de aprender a ciência de Hipócrates.

Deixo à margem o debate, entre os deputados – o médico e o jurista, acerca do peso do cérebro feminino e sua  relação com o do homem. Peço, todavia, a atenção do leitor para a implacabilidade da dialética tobiática:

“Se é possível que a mulher, tendo, na hipótese, um cérebro de peso inferior ao do homem, mesmo assim se desenvolva, mesmo assim cultive com proficiência este ou aquele ramo científico, para que mais lançar mão de semelhantes argumentos, que não passam de conjecturas, já desmentidas pela experiência? Com efeito, já não se trata de uma mera possibilidade, trata-se de um fato: tem existido e existem na época de hoje mulheres notáveis, que se hão dedicado com vantagens a estudos superiores. É um fato; para que desconhecê-lo?“

E avançou Tobias:

“Costuma-se dizer, e o nobre deputado repetiu esse dito ou princípio vulgar: que a missão da mulher é ser mãe…

Dá licença que eu refute esse princípio com um outro, não menos vulgar? – Sim, a missão da mulher é ser mãe, da mesma forma que a missão do homem é ser pai…“

Daí indagou e prosseguiu:

“Ora, em que é que a missão de ser pai tem privado e priva o homem de se dedicar à ciência? Do mesmo modo a mulher pode ser mãe, muito boa mãe, e todavia cultivar perfeita e profundamente a ciência.

Temos exemplos eloqüentes: – entre  outras, Laura Bassi, professora da universidade Bolonha, já aqui mencionada, foi mãe de 12 filhos; – o  que não obstou que ela se desse com todo o desvelo ao cultivo científico.”

***

Mais de cento e trinta anos há que esses discursos foram articulados. Certo é que via longe, no espaço e no tempo, muito longe… aquele Tobias.

Fontes de Alencar

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