Posse como Desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe
‘No instante em que assumo o cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do meu Estado, volto o pensamento para um momento de minha vida, já distante do tempo presente, inícios dos anos quarenta, na comarca de Itabaianinha. Entre imensos livros cartorários, a figura de meu pai, Clodoaldo de Alencar.
No interior do Estado, acolá, a vida era sem ronha e rolava e rodava e rangia rotineiramente, como a roda do carro de boi na serrana paisagem tranqüila. A lentidão comandava as comunicações, que não chegavam ao meu mundo de menino. A meninada não tinha consciência de que o resto do mundo ardia nas chamas da II Grande Guerra. A gurizada – meus irmãos e eu incluídos, sem perceber que esboçava destinos, imitava as audiências de que, como escrivão, meu pai participava. Nem sempre era pacífica a distribuição dos papéis aos participantes.
Por esse tempo jurisdizia naquela comarca o Dr. Raymundo Rosa Santos, que mais tarde viria a ocupar o cargo de desembargador, e a quem agora tenho a honra de substituir neste colendo Colegiado.
Fiz o curso jurídico. Integrei o Ministério Público. Fui advogado. Exerço o magistério do Direito, e a atividade magisterial ensejou-me trabalhar – registro-o com satisfação – ao lado desse sergipano digno do respeito e da admiração dos seus coestaduanos, que é o Prof. José Aloísio de Campos, Magnífico Reitor da Universidade Federal de Sergipe. Fixei-me na Magistratura.
A compreensão e o apoio de Ilma, esposa querida, e a alegria e o carinho de Luiz Carlos, Gisela e Moema, filhos adorados, têm-me dado o alento necessário aos embates da vida.
Tenho que foi a atividade de meu pai, primeiro como serventuário de justiça, ao depois, como advogado provisionado, em tudo, o seu entusiasmo pelo Direito e pela Justiça, que fez despertar em mim a vocação para o estudo da ciência ulpiânica.
Na verdade, senhores, para mim, a alegria deste instante está paradoxalmente debrunhada de tristeza. A meu pai, infelizmente, eu não vejo entre os que aqui se encontram. Os desígnios de Deus são insondáveis. Deus assim o quis. Assim é.
Permiti, egrégio Tribunal, que da cátedra desembargatória o filho lhe preste homenagem dizendo um dos seus mais belos sonetos:
“A PÉROLA
Na montra azul do mar, sobre o lençol de argila,
que a tintura do lodo há milênios encarde,
– desde que nasce a aurora e morre, em sangue, a tarde,
sob a equórea pressão pérola cintila.
A onda, espúmea e revel, que ora avança e vacila,
no evasivo correr de alva Ninfa em alarde
e em cujos ombros nus o ouro dos astros arde,
não lhe rouba, sequer, a postura tranqüila.
O estojo em que ela fulge o homem-do-mar presume
e, num mergulho audaz, vai procurá-la em torno
às rosas de coral dos jardins sem perfume.
Depois, rompendo o leque a mil sargaços, bóia,
Trá-la, fá-la viver presa a colo alvo e morno:
– jóia fina a pompear no engaste de outra jóia.”
Minora-me a dor da sua ausência, esmaecendo o debrum tristonho, a presença, aqui, de minha querida e bondosa mãe – Eurydice Fontes de Alencar.
Ingressei na Magistratura nos idos de 1961. Diz-me a consciência que nunca deixei de cumprir o meu dever de magistrado. Fi-lo, fá-lo-ei sempre, – sem tergiversações, mas também sem prepotência. Tenho tratado os jurisdicionados com urbanidade e, quando desafortunados, com paciência e redobrada atenção;
a todos, com igual senso de justiça, sem descurar do que ensinavam os antigos: Debet noster judex tanquan officium paternum exercens aequalem erga filioshabere affectionem imitando patres, sive expressum sive conjecturatum sequitur. Jamais vesti capa de infalibilidade. A resipiscência nunca arranhou-me a alma.
Eminentes Desembargadores:
Vossas Excelências concederam-me o destaque, assaz honroso, de figurar, na companhia de nobres colegas, de listas tríplices para promoção, por merecimento, ao cargo de Desembargador. Indissimulável o meu contentamento com a honraria, que lhes agradeço ex-corde. A cada vez, porém, a inclusão do meu nome a recebi com a humildade de quem tem apenas a vontade de acertar e o desejo de bem servir à terra natal. De par com os meus agradecimentos, recolham Vossas Excelencias a certeza do meu contributo ao empenho desta Corte na grandeza constante da Justiça Sergipana.
Meus Senhores:
Redigo, nesta oportunidade, pelo ato governamental que me trouxe a este egrégio Pretório, o meu agradecimento ao Exmo. Sr. Prof. e Eng. José Rollemberg Leite, a quem tributo homenagens, não apenas as decorrentes do alto cargo que ocupa, mas, também, as de que é credor pela sua vida exemplar de homem público.
Assinalo a minha gratidão pela maneira extremamente bondosa como fui tratado pelos que nesta sessão se pronunciaram a meu respeito. Por igual a consigno pelas manifestações, inclusive da imprensa, que a minha promoção ocasionou.
Excelências, Senhoras e Senhores:
Conquanto cada Estado-Membro da Federação tenha a sua justiça organizada, os Tribunais e Juízes estaduais são órgãos de um dos Poderes da União, o Judiciário, como expresso está nos arts. 6º e 112 da Constituição da República Federativa do Brasil.
Como doutrinava Jogo Mendes – de quem Alcântara Machado disse ser o mais brasileiro dos nossos jurisconsultos –
“o poder judiciário assegura, por suas decisões, a soberania
da justiça, isto é, a realização dos direitos individuais nas
relações sociais, quer nas relações entre indivíduo e indivíduo,
quer mesmo nas relações entre o indivíduo e a sociedade”.
Perceberam os lusitanos o quanto relacionado é o Poder Judiciário à soberania nacional e – lembrava João Mendes, –
“quando as Cortes Portuguesas quiseram conter o movimento
que tendia à Independência do Brasil, a primeira medida que
tentaram pôr em prática foi a extinção dos Tribunais que D. João
VI, em 1808, criara no Rio de Janeiro. Os políticos da Metrópole
só então compreenderam que, separadas as Justiças, separados
de fato estavam o Brasil e Portugal — …”
De mais a mais, o exercício da atividade jurisdicional é indispensável à consecução de um outro objetivo nacional permanente: a paz social. A magnitude das funções do Poder Judiciário está a reclamar substancial reforma na sua estrutura organizacional, a que se deverão somar alterações das normas processuais, quer na esfera penal, quer no âmbito extrapenal, sem o que se terá um Poder frustrado e frustrante, o que seria de todo deplorável. Reforma que se ocupe não apenas dos colegiados superiores, mas, sobretudo, de sua estrutura de base responsável pelos serviços forenses, compreendendo o foro judicial e o extrajudicial, pois é aí que a Justiça está mais perto do povo. É preciso que o benefício da Justiça gratuita, que a lei assegura aos necessitados, seja uma realidade. Os magistrados da 1ª instância, nada obstante a sua alta qualificação moral e intelectual, bem como aqueles competentes serventuários que os auxiliam, vivem e sofrem os horrores de uma sistemática ultrapassada, asfixiados todos por montanhas de papel.
Relevem-me, senhores, o trato do assunto, sem retoques. Moveu-me o intento de não colocar “sobre a nudez crua da verdade, o manto diáfano da fantasia”.
Todavia, digo-lhes que não sintam nas minhas palavras o Desengano; antes, a Esperança, porque ardentemente desejo e sinceramente acredito na grandiosidade do destino do Brasil.’
(* Texto extraído da Coletânea de Julgados e Momentos Jurídicos dos Magistrados no TFR e STJ.In: Revista do Tribunal de Justiça de Sergipe, n. 5, 1983, p. 318-321.)