
Recife, 1856. Da pensão da Rua do Príncipe saí em direção à Faculdade de Direito, ali perto, na Praça Adolfo Cisne. Naquela manhã receberia a primeira aula de Direito Penal. À hora certa, chegava o Professor Francisco Barreto Rodrigues Campello, de quem até hoje, tanto tempo andado, guardo na mente a figura que trazia à lapela o símbolo de sua fé.
Era catedrático da vetusta Instituição e membro da Academia Pernambucana de Letras. Em 1938, alcançara a cátedra, em concurso, com a tese Colonização Penal da Selva Brasileira. Seus familiares o homenagearam, de maneira justa e significativa, com a publicação de Barreto Campello, trajetória de uma vida (Recife, 1988).
Tenho a alegria de aqui em Brasília haver entrado em contato com descendentes do Professor Barreto Campello. O advogado João Mendonça de Amorim Filho, seu parente afim, contou-me que certa feita lhe pedira, e atendido fora, que escrevesse sobre o que se lembrava de Joaquim Nabuco, de nome completo Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo. E ele escreveu:
Sempre ouvi, na minha família, os mais calorosos e entusiásticos louvores a Joaquim Nabuco, cujo avô era irmão do meu avô, Cel. Antonio Pedro de Sá Barreto. Para tais louvores concorria, além da voz do sangue, que tanto fala, o fato de minha saudosa mãe e suas duas irmãs serem decididas monarquistas…
Não obstante essas frequentes lembranças de família, só o vi, com vida, uma vez, quando aqui passou de volta dos Estados Unidos.
Eu era, então, acadêmico de Direito, talvez segundanista e a Academia foi em peso recebê-lo, quando ele aqui desembarcou, no antigo arsenal da Marinha. O orador por nós escolhido foi o professor Laurindo Leão, famoso orador, cuja palavra era sempre fluente e ardorosa…
Nós, os estudantes, à frente o nosso estimado e talentoso professor, o recebemos no pátio daquele arsenal.
E lhe fez o retrato:
Era um homem alto, corpulento, corado, de fartos bigodes inteiramente brancos, de figura e atitude esbeltas e dominantes.
Respondeu à saudação do nosso orador no seu estilo habitual, sempre fluente, com metáforas significativas e os gestos largos e elegantes, os grandes braços acompanhando elegantemente as ênfases do discurso, feliz de rever a terra natal, de que sempre conservou imorredoura lembrança.
A impressão que a sua presença nos causou correspondeu integralmente à imagem que dele tínhamos à distância.
Inda agora, mais de século distante, Ângela Alonso, em Joaquim Nabuco: os salões e as ruas (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), retoma o fato ocorrido em 1906:
A apoteose foi lá onde se fizera ícone. Recife parou. O comércio fechou as portas. Como antes, José Mariano [Carneiro da Cunha], com o Clube do Cupim [sociedade abolicionista] e estudantes, o escoltou pelas ruas, entre vivas, aplausos e flores até o Santa Isabel lotado.
Agora, o remate do emérito memorialista:
Não obstante esse fugazes contatos, tenho sempre presente o imorredouro trecho do seu discurso [dele Joaquim Nabuco] sobre a abolição, no qual, no seu estilo grandiloquente, declara ter visto nascer aqui como um fio dágua, mas que, depois, se avolumou a ponto de se comparar à cheia que tudo alaga.
Campanha Abolicionista no Recife: Eleições de 1884, de Joaquim Nabuco, teve sua edição primeira em 1885, no livro guardadas conferências pronunciadas no Teatro Santa Isabel e discursos do grande tribuno em outros espaços recifenses. Prefaciou-o Aníbal Falcão, republicano extremado. Ambos, bacharéis do Recife. Segundo registra Clóvis Beviláqua, em História da Faculdade de Direito do Recife (Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, I vol., 1927), aquele da turma de 1870; o segundo, da de 1879. O Senado Federal reeditou, em 2005, a mencionada produção nabuquiana. A primeira conferência ali constante é a que pronunciara Joaquim Nabuco no dia 12 de outubro.
Confronte, leitor amigo, o tópico último do memento e o trecho da conferência de 12 de outubro, abaixo transcrito, e verificará que a ele aludia o saudoso Professor Barreto Campello:
Sim, senhores, é diante do movimento abolicionista que vos achais colocados. Para qualquer lado que me volte, vejo o horizonte coberto pelas águas dessa inundação enorme. Vi essa grande corrente, que hoje alaga o país como um rio equatorial nas suas cheias, quando ela descia como um fio de água cristalina dos cimos de algumas inteligências e das fontes de alguns corações, iluminadas umas como outras pelos raios de nosso futuro. (Aplausos.)
Eu o vi, esse rio já formado, abrir o seu caminho como o Niágara pelo coração da rocha, pelo granito de resistências seculares. (Muito bem!) vi-o quando, depois das cataratas ele ganhou as planícies descobertas da opinião (continuam os aplausos), desdobrou-se em toda a sua largura, alimentado por inúmeros afluentes vindos de todos os pontos da inteligência, da honra e do sentimento nacional; mudando de nome no seu curso, como o Solimões – chamando-se primeiro Ceará, depois Amazonas, depois Rio Grande do Sul (os aplausos cobrem a voz do orador) e hoje o vejo prestes a despejar-se no grande oceano da igualdade humana, dividido em tantos braços quantas são as províncias, levando em suas ondas os despojos de cinco ministérios e a represa de uma legislatura (aclamações) e vos digo, senhores: não tenhais medo da força dessa enchente, do volume dessas águas, dos prejuízos dessa inundação, porque assim como o Nilo deposita sobre o solo árido do Egito o lodo de que saem as grandes colheitas, por forma que se disse que o Egito é um presente do Nilo, assim também a corrente abolicionista leva suspensos em suas águas os depósitos de trabalho livre e de dignidade humana, o solo físico e moral do Brasil futuro do qual se há de um dia dizer que ele na sua prosperidade e na sua grandeza foi um presente do abolicionismo.
Fontes de Alencar