Discursos e outras falas

Elogio de Jorge Medauar

Por primeiro, ilustre auditório, a minha louvação a Almeida Fisher, bem-fazente letrado que nesta altiplanura fundou, com seus coetâneos, expressivas instituições culturais: Academia Brasiliense de Letras, Associação Nacional de Escritores e Academia de Letras do Brasil.

Dessa última me achego agora porque mo consentiu o Colegiado da instituição, ao qual peço recolher o meu agradecimento verdadeiro.

Senhoras e senhores:

Os séculos conservam memória de academias, dalém e daquém do Atlântico, voltadas ao culto das letras, das ciências e das artes. Sem embargo do perfil de cada integrantes de tais corporações, esquisitices ocorriam. Domingos Carvalho da Silva, professor, poeta e ensaísta, que importante atuação exerceu no ambiente universitário desta Capita e forte marca deixou na literatura nacional, dá notícia em Uma Teoria do Poema (Editora Civilização Brasileira, 2ª Ed., 1989) do esquipático soneto “A uma formosa Dama, que tendo bons olhos, não tinha nenhum dente”. Soneteara o seiscentista André Rodrigues de Matos (1638-1968), da confraria dos Generosos. O adjetivo generoso é denotativo de “que vem de boa casta ou geração, de pais nobres e ilustres”, como registrado por Antonio de Moraes Silva, no seu famoso Dicionário de Língua Portugueza, na 4ª edição lisbonense de 1831; traço que faz consonância com o substantivo genus,eris, do falar de Cícero.

A Academia Paulista de Letras, de que é Presidente o Acadêmico José Renato Nalini, já agora completa Centenário, e insere nas comemorações correspondentes publicação de livro com escritos a respeito de “O significado das Academias de Letras no século XXI”. Anderson Braga Horta, membro da Academia Brasiliense e desta Entidade, multilaureado homem de letras, a propósito da quaestio escreveu, recentemente, que os

Estatutos da Academia Brasileira de Letras, marco e modelo das inúmeras outras que vicejam em nosso país, atribui-lhe ‘por fim’, direta e singelamente, ‘a cultura da língua e da literatura nacional’… A academia não é por definição, nem o deve ser mesmo, sistematicamente contrária ao novo. Nem é atribuição sua defender indiscriminadamente, isto é, sem critérios valorativos, tudo o que se abrigue sob o rótulo de tradição. Compete-lhe isto sim, preservar das razias de vândalos e, já hoje, de pseudovanguardas irresponsáveis a integridade lingüística e o patrimônio nacionais.

E assim é, audientes, porque as Instituições Acadêmicas são guardiãs e defensoras da Cultura de cada sociedade no pertinente ao respectivo campo operoso, sobretudo neste momento da História em que a pretendida globalização é pensada segundo os interesses da empedernida plutocracia de todos os rumos da rosa-dos-ventos.

Apropositadas são as palavras de Alceu Amoroso Lima ao receber Augusto Meyer na Casa ideada por Lúcio de Mendonça, a que Machado de Assis Presidiu de 1897 a 1908:

Será que a Academia mudou ou mudamos nós? Provavelmente nem uma nem outra coisa. Embora estivéssemos ao lado de Graça Aranha, em 1924, …sabíamos que era vã sua esperança de mudar a natureza da Academia, transformando-a em renovadora de forma estéticas. Sempre foi outra a missão das Academias em todo o mundo. Foi sempre a de defender o patrimônio cultural de um povo, sem tolher entretanto o surto contínuo da sua renovação. 

… As Academias não são boas ou más por si mesmas. São más quando pretendem aparar os raios com a mão, como dizia o nosso Mário de Andrade… Mas são boas quando deixam as cigarras cantarem em liberdade, sem desdenhar, entretanto, o papel das providas formigas, abastecedoras e guardas vigilantes dos celeiros. 

Ilustrada assistência:

Meava-se o Século XIX. Os decênios que se seguiriam, ricos de pensamentos novos e fatos sem precedentes, assistiriam a grandes e fortes mudanças na vida naciona brasileira. Logo no começo da nova metade centurial a impulsão empreendedora do Barão – e depois Visconde com grandeza, de Mauá dotaria a Capital do Império de iluminação a gás.

Na antiga Capital, lá na Guanabara, Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) produziu Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro e Memórias da Rua do Ouvidor. E, mais tarde, Luiz Edmundo (1880-1961) enriqueceu a nossa literatura dando a lume O Rio de Janeiro de meu tempo, de 1938; ele que já nos dera O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. A propósito dos painéis traçados nesse último, a apóstrofe de Martins Fontes a seu autor em Nós, as Abelhas:

Príncipe! O filho de Apuleio
E o Irmão de Bastos Tigre, – és tu!

No capítulo relativo à Praça Tiradentes o seghundo dos memoristas traçou este quadro:

Ouvem-se vozes, berros, gritos, assobios, que vêm, num coro escandaloso, dos lados da Travessa Silva Jardim e, logo, a figura macabra de um homem de cabelo em PE, olho trágico, a correr como um doido, perseguido por um bando composto de atrevidos garotos. Traz ele, na mão, um varapau enorme, em cuja extremidade superior há uma porção metálica que faúlha.

Ouvem-se então, distintamente, os gritos:

__ Ó Profeta! Olha, o Diabo! Mostra-lhe a Cruz! É o acendedor de lampião, que, sob a surriada de vadios, faz léguas a correr. Diante de cada combustor, serenamente, pára, enfia o varapau numa fenda e acende o bico de gás. Quando parte, o coro de vozes insiste, de novo a persegui-lo: 

Profeta! Olha o Diabo! Olha a Cruz! (…) 

É tradição no Rio de Jnaeiro essa pilhéria de mau gosto, feita ao pobre acendedor de lampiões, um homem que recebe da Societé Anonime Du Gaz uma miséria, e que vive a arrebentar-se, sem glória, sem estímulo, pelas ruas da cidade, a correr, a correr, léguas e legas… 

Há um soneto clássico que se ocupa dessa figura. Digo-lhes os dodecassilábicos:

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente! 

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender impertubavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente 

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana que habita. 

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões de rua!

Tal composição poética tem o título de O Acendedor de Lampiões, e integra-se à coletânea XIV Alexandrinos, publicada em 1914; mas, o soneto data de 1910 porque escrito e publicado aos 17 anos, como esclareceu a João Condé o seu criador, Jorge de Lima, o Patrono da Cadeira XVI, que assumo nesta Casa.

O mundo do menino impossível, de 1925, assinala sua presença no Movimento Modernista. De então enfatizo Essa Negra Fulô.

Distintíssimo auditório:

É oportuno aqui redizer o pensamento de Alceu Amoroso Lima, exposto em Quadro Sintético da Literatura Brasileira, no sentido de que o fazer literário de inspiração religiosa foi um movimento próprio do Modernismo,

cujo advento, em 1922, coincidiu com uma profunda renovação dos nossos valores espirituais, a qual se ligaram definitivamente os nomes de Leonel Franca e de Jackson de Figueiredo.

Em 1929 A Ordem, revista então dirigida por Tristão de Ataíde e Perillo Gomes, editou In Memoriam, páginas de ou sobre Jackson de Figueiredo, seu fundador, que tragicamente falecera no ano anterior.  Ali está publicado Poema (à memóra de Jackson) de Jorge de Lima, de que lhes passo estes versos:

Nossa Senhora, minha madrinha,
tu vês as coisas verdes, não é?
Meus olhos pretos, coitados deles!
Teus olhos verdes, felizes deles,
minha madrinha, Nossa Senhora da Conceição!

Nossa Senhora, dá-me teus olhos
para eu ver com eles meus pobres olhos.
Coitados deles, minha madrinha,
só vêem as coisas como elas são.

Nossa Senhora, minha madrinha,
pinta meu olhos, que eu quero ver
verdes os dias que inda virão.

………………………………………..

Do Patrono da Cadeira outrora ocupada por Jorge Medauar, surgiram, na década de trinta, Tempo e Eternidade, de parceria com Murilo Mendes, e A túnica inconsútil; na que se lhe seguiu, Mira-Celi.

A poética de Jorge de Lima é densa e é bela!

A Universidade Estadual de Santa Cruz, do Estado da Bahia, publicou, no ano 2000, Ensaios, de Jorge Medauar, contendo Minhas Memórias de Jorge de Lima e Personagens Árabes na obra de Jorge Amado, acrescido o volume de Bandeira versus Medauar: uma escaramuça poética, texto de Hélio Pólvora. No primeiro desses trabalhos o ensaísta se revela grande admirador do poeta deTempo e Eternidade (belíssimo título – diz ele) e afirma:

um poeta tão criador, versátil e fecundo como Jorge de Lima, de que a temida  autoridade crítica de Agripino Grieco afirmava, para que não restasse dúvida: “É poeta, poeta, poeta”, e que pressentira sua eternidade, nunca será esquecido: crescerá sempre, por mais que o tempo passe.

E te-lo conhecido, como o conheci pessoalmente, é mais do que um memorável acontecimento de importância literária: na verdade é um privilégio.

Ao tempo em que Ives Gandra da Silva Martins ocupava a sua Presidência, o Clube de Poesia e o SESC, presidido o respectivo Conselho Regional por Abram Szajman, promoveram lá em São Paulo, no ano de 1995, a exposição comemorativa Geração de 45/50 anos.

Bem antes Péricles Eugênio da Silva Ramos, em Do barroco ao modernismo, na 2ª ed., de 1979, escrevera:

Por volta de 1945, alguns poetas que estavam surgindo aceitaram o convite de trabalho que era a pregação crítica de Mario de Andrade e procuraram atingir, com o exemplo de Valery uns (João Cabral de Melo Neto) , com a estética de Croce outros ( Domingos Carvalho da Silva, Péricles Eugênio da Silva Ramos),  uma poesia de expressão  nítida, em que “o sentimento se resolvesse em imagens”. Desprezava-se portanto a anedota, e desdenhava-se a expressão não comedida… Foram os críticos como Álvaro Lins, Sérgio Milliet e Alceu Amoroso Lima os primeiros a apontar a existência dessa poesia de expressão disciplinada – e os poetas novos aceitaram a palavra da crítica, passando a designar-se como “geração de 45”, segundo o rótulo imaginado por Domingos Carvalho da Silva.     

Naquela mostra evocatória dos poetas da Geração de 45 estão nomes que se liam com esta solenidade: Anderson Braga Horta e Ledo Ivo, ocupantes, respectivamente, das Cadeiras III e XXIII desta Instituição; Jorge de Lima, Patrono da de nº XVI, e Jorge Medauar, seu fundador; e também Fernando Mendes Vianna, que nos deixou versos e saudades na Academia Brasiliense de Letras e na Associação Nacional de Escritores.

Permitam-me, senhores, que eu ajunte aos mencionados um outro que lá se acha: o de Carlos Pena Filho, de quem fui contemporâneo na vetusta e querida Faculdade de Direito do Recife, instituição de irrecusável vetustade.

Jorge Medauar, a quem sucedo nesta Casa, nasceu em Água Preta do Mocambo, outrora Distrito de Ilhéus, lá na Bahia, em 1918. Revelar-se-ia criativo narrador e seu primeiro livro de contos receberia o título, et pour cause, de Água Preta. Poeta, estreara-se em 1945 com o livro Chuva sobre a tua semente, editado pela José Olympio, do Rio de Janeiro; donde extraio este poema exponente da sua baianidade:

Canto da minha terra

Todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha. 

Minha terra tem coqueiros,
coco mole, babaçu,
piaçaba, carnaúba,
macaxeira,  jerimum.

Minha terra tem talentos,
Castro Alves, Rui Barbosa,
meu xará, um romancista,
Jesus Cristo que é de lá.

Todos cantam sua terra.

Minha terra tem Bonfim,
cangerê, urucubaca,
Iemanjá, Oxolufã,
Pai-de-santo, candomblé.

Minha terra tem saveiros,
procissão e romaria,
pescador e jangadeiro,
lua cheia sobre o mar.

Minha terra tem jagunços,
tem tocaias e caxixes,
tem São Jorge cavaleiro,
e outros santos de valor.

Minha terra tem dendê,
mugunzá e caruru,
tapioca, acarajé,
mingau de puba e beiju.

Todos cantam sua terra,
também eu cantei a minha.

Devo-lhes, caríssimos Amigos, a biografia do meu antecessor. Ei-la nos próprios versos medauarianos: os do poema que encerra a coletânea Morada da Paz, de 1949, publicada pela Brasiliense, de São Paulo:

Autobiografia

Meu nome todo é Jorge Emilio Medauar
Filho de imigrantes árabes
Tenho ficha na polícia cidadão indesejável elemento agitador 

E amo gatos bichinhos miúdos sem importância
Nunca matei passarinho (uma vez fui, a mão tremeu)
Amo amizades construídas em bar esquina cabaré
rio de minha terra
O mar onde pulo em mergulhos
Onde vejo barcos gaivotas penso em piratas heróis da infância
Penso em viagens conhecer tudo quanto é canto do mundo
Amo as noites luarinas gatos miando pelos telhados
Amo meus livros meu quarto os retratos de mãe e do líder que me fitam
Amo até porque compreendo os que me magoam 

Quando nasci em Água Preta meu pai como qualquer pai
Se alegrou deu dinheiro aos pobres
Farinha e carne seca aos cegos da feira
Minha mãe fez promessa prometeu meu nome a São Jorge meu protetor
Também fui batizado crismado como cristão 

Cresci aprendi sofri amei
Amei tanto que virei poeta para amar também
Esta coisa que me espreme o coração
Isto que me dá de noite de manhã a qualquer momento
Que me põe na mesa me obriga a chorar
A ver letras tremendo em minha frente
Gota de lágrima escorrendo pelo rosto borrando a página

Por hoje
 – Adeus

 A Civilização Brasileira lhe editou em 1956 À estrela e aos bichos, caderno de sonetos.

De 1959 é Fluxograma, também de Medauar, edição do Club de Poesia de São Paulo, com uma instigadora introdução intitulada de A Coragem de Construir, sendo Décio Pignatari o prefaciador, que assim inicia lembrando celebérrimo poema machadiano:

 Mais um poeta acabada de matar a mosca azul. A poesia de Jorge Medauar entra em fase reflexiva, em conjuntura crítica – e este é o seu salto qualitativo. O poema, aqui, já não é discurso sobre tema lírico: este é mera amostragem, quase indiferente, de um conteúdo invariável. O poema fala de si mesmo, não autoinvocando-se, mas de dentro para fora – e enquanto o faz se faz.

Os organizadores daquela exibição de poetas da geração de 45 mostraram também, na oportundiade, peça do lavor de Jorge Medauar, que se encontra no livro Prelúdios, Noturnos e Temas de Amor, estampado pela livraria José Olympio Editora, da então Capital da República, em 1954. Ei-la:

Soneto

Sabei, sabei que fiz de antigos cedros
Barcos que a infância pôs à flor das ondas:
Meu pai, que é Medauar, teceu-me as velas
E a filha dos Zaidans, que é minha mãe,

Pôs amoras de mel no tombadilho.
Nesses barcos navego, marinheiro

Fenício do Zodíaco e dos trópicos
Vermelhos de lamentos e canção

Hoje tenho lagunas onde aporto,
Tranquilamente, sob a lua branca,
O coração de Tâmara madura. 

Se vos trago damascos e Kakláua
É porque recebi dos velhos árabes
Um lastro de doçura nesses barcos.

Senhores Acadêmicos,

Sublima a honraria que a mim outorgastes a circunstância de ser recebido aqui por Anderson Braga Horta, remestre em poesia e prosa, mui louvado autor de obra significante da literatura brasileira.

Fontes de Alencar

Discurso de posse na Academia de Letras do Brasil

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